sexta-feira, 19 de julho de 2013

A TEMPESTADE OU O LIVRO DOS DIAS- LEGIÃO URBANA, 1996 (EMI).


"O Brasil é uma república federativa cheia de árvores e gente dizendo adeus", esta citação de Oswald de Andrade, substitui as tradicionais frases "Urbana Legio Omnia Vincit" (Legião Urbana a tudo vence) e "Ouça no volume máximo", sempre presentes em todos os álbuns da Legião, a razão da insólita mudança  só foi compreendida mais tarde com a notícia da morte do líder da banda, Renato Russo. “A Tempestade ou o livro dos dias” é a carta de despedida do maior nome do Rock Nacional dos anos oitenta.

Depressivo e melancólico, a Legião despeja tristeza, mágoa, solidão e angustia em quase todas as faixas do disco. Ainda que tente passar uma mensagem de otimismo e esperança, os sentimentos de abandono e revolta falaram mais alto na percepção criativa do compositor Renato Russo, que respinga suas dores físicas e emocionais nas canções do álbum.

 A principio a ideia era a de se fazer um álbum duplo com as canções que sobraram para o disco posterior, “Uma outra estação”, que foi lançado após a morte de Renato Russo.

O líder da legião, por alguma razão desconhecida, com exceção de em “A via láctea”, não quis gravar a voz definitiva nas faixas, ficando apenas a voz guia. Apesar de imperceptíveis as diferenças técnicas, é provável que ele tenha tido a intenção de sublinhar a canção que revelava a sua real condição de saúde. A espera da morte: “um anjo triste perto de mim”, “E quando chegar a noite cada estrela parecerá uma lágrima”; a indignação ante a falta de esperança: “ quando tudo está perdido sempre existe uma luz, mas não me diga isso.”;  a ironia ante a sensação de abandono:E essa febre que não passa, e meu sorriso sem graça, não me dê atenção mais obrigado por pensar em mim”, e a angústia revelada: “Queria ser como outros e ri das desgraças da vida ou fingir está sempre bem, vê a leveza das coisas com humor”.
Em “Dezesseis”,Renato Russo fala em tom moralista aos jovens que desperdiçam suas vidas, contando a estória  de um adolescente que morre em uma acidente suicida durante um pega.Sugere um misto de arrependimento pelos  excessos  com a tristeza e a saudade dos que ficam.
“Leila” é uma canção do cotidiano, fala do dia-a-dia de uma mulher independe que lida com seus trabalhos e cuida sozinha dos filhos, algumas sacadas do Renato Russo, dão o toque de humor que tempera com leveza o ar depressivo do disco: “E você diz daquele seu jeito:- Ai, eu preciso de um homem! - E eu digo:- Ah, Leila, eu também! -  E a gente ri.”
“Longe do meu lado”, uma parceria do Renato Russo com o legionário Marcelo Bonfá, é a mais perfeita tradução da decepção amorosa e da dificuldade de se recompor os sentimentos após uma perda afetiva. A paixão é retratada com um algoz da alma, estar apaixonado uma opção a ser evitada: “A paixão já passou em minha vida/Foi até bom, mas ao final deu tudo errado/E agora carrego em mim/Uma dor triste, um coração cicatrizado/E olha que tentei o meu caminho/Mas tudo agora é coisa do passado/Quero respeito e sempre ter alguém/Que me entenda e sempre fique a meu lado/Mas não, não quero estar apaixonado”.
“Soul Persival”, parceria do Renato Russo com a cantora e compositora Mariza Monte, demonstra ser mais uma canção psicossomática da doença terminal do Renato Russo, a dor física e sofrimento reaparecem em versos como “Estive cansado/ Meu orgulho me deixou cansado/Meu egoísmo me deixou cansado/Minha vaidade me deixou cansado/Não falo pelos outros/Só falo por mim/ninguém vai me dizer o que sentir.”
A belíssima “Quando você voltar” é a faixa redentora do álbum, o desgaste da relação afetiva que leva a brigas intermináveis se dissolve em versos de reconciliação, em meio a tanta angústia e tristeza, a esperança do amor que pode renascer é uma espécie de alívio perante a dor e a solidão: “Vai, se você precisa ir, não quero mais brigar essa noite {...} E quando você voltar tranque o portão, feche as janelas, apague a luz e saiba que eu te amo.”
Melancólico, Renato Russo se despede dos amigos e da família, em “Esperando por mim”, agradece pela solidariedade e pelo apoio, guarda os bons momentos e pede respeito pela sua memória: “Hoje à tarde foi um dia bom, sai prá caminhar com meu pai/ Conversamos sobre coisas da vida/ E tivemos um momento de paz/É de noite que tudo faz sentido/No silêncio eu não ouço meus gritos/ E o que disserem meu pai sempre esteve esperando por mim/ o que disserem minha mãe sempre esteve esperando por mim/ E o que disserem meus verdadeiros amigos sempre esperaram por mim/ E o que disserem agora meu filho espera por mim/Estamos vivendo e o que disserem os nossos dias serão para sempre.”
Em “O livro dos dias” Renato Russo, lamenta seu definhamento e espera passivo a própria morte, questiona o pecado e o preconceito, e, em seu juízo final absorve a si mesmo: “Ausente o encanto antes cultivado/ Percebo o mecanismo indiferente/ Que teima em resgatar sem confiança/ A essência do delito então sagrado/ Meu coração não quer deixar meu corpo descansar/ E teu desejo inverso é velho amigo/ já que tenho sempre a meu lado {...} O indulto a ti tomasse como benção/ Não esconda a tristeza de mim/ Todos se afastam quando o mundo está errado/ Quando o que temos é um catálogo de erros/ Quando precisamos de um carinho, força e cuidado/ Esse é o livro das flores/ Esse é o livro do destino/ Esse é o livro de nossos dias/ Esse é o dia de nossos amores”.
A grande dificuldade em falar sobre um álbum da Legião e ter que escolher trechos das canções da banda, não há verso que se possa desprezar nas letras do Renato Russo, tudo é belo, tudo é profundo e tudo se completa.
Renato Russo partiu aos 36 anos, vítima da AIDS, doença que escondeu do público até o ultimo instante, A tempestade (a doença) e o livro dos dias (onde a vida está escrita), chegaram ao clímax, agora só restou a calmaria do repouso final. Em 11 de outubro de 1996, o Brasil se tornou um país cheio de arvores e de gente dizendo adeus  ao maior poeta do Rock nacional.

A Legião Urbana a tudo vence, ouça no volume máximo!!!


quinta-feira, 11 de julho de 2013

SENTIDO - FLAVIA BITTENCOURT (SOM LIVRE, 2005).



Primeiro álbum da cantora e compositora maranhense Flávia Bittecourt, “Sentido” é uma obra prima, sendo inclusive pré-selecionado ao para o Grammy Latino e para o Prêmio Tim de Música, tendo com principal ingrediente o timbre maravilhoso da cantora.
Com participações de Dominguinhos, Renato Braz, Quinteto em Branco e Preto e do maestro Laércio de Freitas, o álbum apresenta para o mundo o lirismo e a singularidade da música feita no Maranhão ao lado de perolas da MPB, com referências marcantes de elementos da cultura popular maranhense e nordestina. Apesar disso foge ao estereótipo de ser um disco regional e folclórico, perfila-se mais ao conceito de musica do mundo, mesclando-se também a elementos da musica pop. No repertório, músicas autorais e de outros compositores como Zeca Baleiro, Josias Sobrinho, Martinho da Vila e Raimundo Macarra.
“Terra de Noel” de Josias Sobrinho, que foi incluída na trilha sonora da novela “América” da TV Globo, é um samba de altíssima qualidade, é uma espécie de autoafirmação de uma artista que está pronta para romper fronteiras, vencer com seu talento e conquistar o mundo: “Não vou tirar meu chapéu pra qualquer vagabundo, nasci na terra de Noel, sou cidadão do mundo...”
“Flor do mal”, composição de Cezar Teixeira, que é parte do repertório do cultuado “Bandeira de Aço”, do Papete, ganha ares de clássico reinventado, a doçura da voz da Flávia, reverte em sentimentalismo a rebeldia áspera dos anos da repressão. Os versos revoltosos de Cezar recebem uma atmosfera saudosista, que reforça o espírito de preservação cultural própria dos maranhenses.
“Boi de lágrimas”, de Raimundo Macarra, com tons apoteóticos, é uma esplendorosa toada de bumba-meu-boi, carregada de lirismo e emoção, uma bela lembrança do folguedo que é o ápice da expressão cultural do Estado.
“Vazio”, de autoria da própria Flávia, tensa, é do meu humilde ponto de vista a melhor musica do álbum, versos melancólicos e por que não dizer “depressivos”, descrevem a solidão de um prisma singular: “Pressinto que esse vento leve, leva algo que carrego comigo, assim como a chuva que cai e com a corrente vai e não volta mais. Pode o vazio, ser assim tão frio, e me encher de mágoa e solidão, mas eu preciso sair desse abismo e me esvaziar de vez de tanta escuridão.”
Também de autoria da Flávia, “Sentido”, a faixa titulo do álbum, parece antagonizar “Vazio’, com versos carregados de otimismo e esperança, o lirismo vence a dor e desespero ante ao caos, o sentimento é de pura liberdade: “O que posso encontrar se aqui bem depois do mundo eu voar, talvez ainda fosse estar a vida de quem não sabe voltar e se achar.Todo pensamento leva nada e mais sem razão talvez seja ilusão que o escondido não pode ter sentido como uma canção. O que quero encontrar se aqui bem depois do mundo eu olhar, sei que ainda vai pulsar a força que sempre resta pra buscar e se achar.”
“Estrela do Mar”, também conhecida pela preciosa interpretação de Maria Bethania, conta a estória do amor impossível ou quase, entre um grão de areia da praia e uma estrela do céu, é emoção pura.
Destaque também para “Canto de Luz”, de José Pereira Godão, que traz para o álbum a magia dos toques de caixa da festa do divino, memória emotiva da religiosidade maranhense.
“Sentido”,é um daqueles álbuns que a cada faixa nos enche de emoção e sentimentos variados, a gente ouve e acredita, que tudo sim pode ter sentido como uma canção.

AS AVENTURAS DA BLITZ 1, 1982 (EMI-ODEON).




O apresentador Flávio Cavalcante, em rede nacional, parte um disco de vinil ao meio, joga na lixeira, e esbraveja “lixo, uma porcaria, isso não vale nada!”, tudo diante da banda que acabara de se apresentar: jovens com roupas coloridas e penteados esquisitos. A atitude, que nos parece bizarra hoje, fazia parte de um quadro do programa do apresentador; a Banda era a “Blitz”, formada por Evandro Mesquita, guitarra e voz; Fernanda Abreu e Macia Bulcão, vocais; Ricardo Barreto, guitarra; Antônio Pedro Fortuna, baixo; William “Billy”, teclados; e Lobão, bateria, substituído mais tarde por Juba, jovens cariocas recém saídos da trupe do “Circo voador”, alguns eram ex-integrantes do grupo revolucionário e despojado “Asdrúbal trouxe o trombone”, que tinha no elenco gente como Regina Casé, Luis Fernando Guimarães e Patrícia Pillar, e; o álbum era “As Aventuras da blitz 1”, primeiro trabalho da Banda. 
O que o Flávio Calvancante, que tinha como missão destruir midiaticamente as novas revelações da música, não sabia era que ali diante de seus olhos e despedaçado em suas mãos estava a semente, o embrião, do que seria o conceito de cultura pop e comportamento jovem que permearia no Brasil durante toda a década de oitenta.Contudo, a semente germinou, a “Blitz” se tornou um sucesso estrondoso, seria a referencia do “NEW WAVE”, ou “Nova Onda”, movimento que ditava o comportamento e a maneira de vestir dos jovens dos anos oitenta, e embalava as festinhas com o rock “mamão com açúcar”, e por outro lado, abriu as portas do mercado fonográfico para as bandas que já existiam e deram origem ao movimento Rock Brasil 80. Um medíocre ato de repressão foi o estopim da revolução musical que tomou conta do país na década de oitenta.

O álbum, que espantou e agradou a juventude de cara, tinha o gosto da novidade, a “Blitz” era diferente de tudo o que já se havia ouvido até então. Uma nova linguagem, um novo estilo musical, uma nova pegada e uma forma totalmente diferente de se escrever canções. As letras continham narrativas, contavam estórias, falavam de aventuras amorosas e picardias adolescentes, com linguagem teatral, dramatizavam as situações, havia diálogos dos personagens, etc.

As faixas “Você não soube me amar”, que narra um encontro casual entre um casal apaixonado que discute sobre batatas fritas e chopp e, “Mais uma de amor (Geme- geme)”, foram sucessos instantâneos. As faixas “Ela que morar comigo na lua” e “Cruel, cruel, esquizofrênico blues”, foram barradas pela Censura Federal, esta ultima por causa de um trocadilho com o “peru de natal”. O LP chegou nas lojas com as duas faixas inutilizadas por cortes de laminas. 
O fato é que a Blitz fez sua história acontecer e fez acontecer a história do rock nacional. Questões qualitativas a parte, foi uma das mais importantes bandas do Rock Nacional Oitenta, seu sucesso foi tanto que rendeu um especial na Globo: “Blitz contra o gênio do mal (1984), ” e até álbum de figurinhas. Toma Flávio Cavalcante!!!

sexta-feira, 5 de julho de 2013

BAIANO & NOVOS CAETANOS, 1974 (SOM LIVRE).



Os anos de chumbo da ditadura militar e a explosão do Tropicalismo. A arte silenciada, amordaçada pela censura e a arte, extravagante, irreverente, escandalosa e constrangedoramente nacionalista dos tropicalistas em meio a farsa do milagre econômico que maquiava a miséria dominante nas terras tupiniquins, criaram a atmosfera perfeita para o surgimento da dupla virtual (embora pouco usual, a palavra virtual já existia antes da internet) Baiano & Novos Caetanos, composta por Baiano e Paulinho Boca de Profeta, personagens interpretados respectivamente por Chico Anísio e Arnauld Rodrigues, criados para um quadro do humorístico da Globo “Chico City”. O cantor Caetano Veloso e os Novos Baianos serviram de inspiração para criação dos dois personagens.

A ideia a principio era fazer uma sátira ao movimento tropicalista, que com seus conceitos, retórica, estética, manifesto, impressões e avalanches pós-modernistas, descarrilava tornando-se o óbvio, a peça fora da engrenagem absorvida pelo sistema, saturava-se por não sobreviver aos seus próprios dogmas. Então voltam-se para si os estereótipos, os quais criticava, dos quais eram também uma relevante parcela.
A dupla embarca no tropicalismo do tropicalismo, autocrítica do movimento vinda de fora, ou de dentro, sei lá, depende do ponto de vista, se existir mais de um. Os trejeitos, o figurino, o palavreado, os cacoetes, os silogismos dos expoentes da tropicália eram um prato cheio para os dois humoristas que engrossavam o caldo com a sátira política metafórica própria para os ares de uma ditadura.
O álbum de 1974, da dupla, é um disco politizado, engraçado e de uma sonoridade surpreendente, bonita e inovadora. Foi além da piada, virou coisa séria. Com pegada que varia do Samba-rock à música rural, carregado de brasilidade, o som viaja pelas origens de nossa musicalidade, visita nossas veias culturais. É um tropicalismo acidental.
Em “Vô batê pa tu”, com participação do personagem do Chico Anísio “Coalhada”, que meio perdido pergunta: “o que que eu tô fazendo neste disco”, a faixa de abertura, cheia de efeitos sonoros, de uma plateia virtual (de novo), toca na feridas dos dedo-duros, gente do meio artístico e intelectual, que entregavam os colegas que não andavam na linha da ditadura, a “entregação com dedo de veludo”; em “Urubu tá com raiva do Boi” o alvo foi o “milagre econômico brasileiro” que era a vedete do regime militar, sintetizada no discurso Delfiniano: “O povo vai mal, mais o pais vai bem”.
“Cidadão da mata”, canção politicamente correta com mensagem ecológica, encerra-se no discurso ativista: "Amo, amo a mata! Porque nela não há preços. Amo o verde que me envolve... o verde sincero que me diz que a esperança, não é a ultima que morre. Quem morre por último é o herói. E o herói, é o cabra que não teve tempo de correr..."
“Dendalei”, com arranjos de flauta que nos remetem aos bang-bangs italianos, faz critica ao conservadorismo e ao conformismo: “ Do que eu vi, muito gostei, tudo perfeito de mais, dendalei, dendalei. Sou fã desse meu firmamento, sou fã da roda em que entro, sou fã do velho testamento”.
Sarcásticos, visionários e criativos, assim eram Baiano e Paulinho Boca de Profeta, ou melhor, Baiano e Novos Caetanos.


quinta-feira, 4 de julho de 2013

RACIONAL, VOL.1-TIM MAIA, 1975 (SEROMA).



Produção independente do Tim Maia é o Quinto álbum do cantor. Gravado quando o Tim estava em sua melhor fase, com sucesso na mídia, amadurecendo como artista, na melhor forma de sua qualidade vocal. Este álbum e seu sucessor o “Racional, Vol.2”, no formato vinil, alcançaram o status de raridade, procurado por fãs e colecionadores em todo o mundo.

Edição para lá de limitada, a excelente qualidade musical do trabalho e a história mística que envolve sua produção contribuíram para que “Racional, vol.1” tivesse tamanha notoriedade atualmente, embora não tenha tido uma vendagem expressiva a época de seu lançamento.
As bases já estavam gravadas desde junho de 1974, antes mesmo do Tim pensar o “Racional,Vol.1”, o que só aconteceu após a “revelação”: com a vida desregrada e envolto com drogas Tim Maia, colocava em risco seu desempenho vocal, foi quando por acaso se deparou com o livro, “O universo em desencanto”, doutrina da Cultura Racional, seita fundada por Manoel Jacintho Coelho, que difundia a crença que seus fieis seriam resgatados por discos voadores e levados para o “Mundo Racional”, para isso o fiel teria que se desmagnetizar,através da imunização racional, que se conseguiria lendo os livros do universo em desencanto.
Adepto da “Cultura Racional” Tim Maia se afastou das drogas, do cigarro e do álcool, converteu forçosamente todos os integrantes da banda “Vitória Régia” a sua nova religião, e, tornou-se o grande veículo de divulgação do “Universo em desencanto”, para a alegria do Sr. Manuel Jacinto, que teve um aumento considerável no saldo de sua conta bancária, com o crescimento de sua seita, motivado pela presença Tim e outras celebridades que este convidava só para conhecer.
Ao entregar o novo trabalho à RCA, gentilmente pediram que outra proposta fosse apresentada. Um disco doutrinário, envolvimento com uma seita desconhecida, grande chances de fracasso de vendas, eram problemas que a gravadora não desejava enfrentar. Tim comprou as fitas com as gravações da base e criou o seu próprio selo, o SEROMA, nome extraído das iniciais de seu nome de batismo, Sebastião Rodrigues Maia, e lançou de forma independente o seu novo trabalho.
Quando finalmente Tim Maia se desencantou com o “universo em desencanto”, retirou os Racionais, vol. 1 e 2, de circulação, tornando-os mais raros ainda até o lançamento em CD, em 2006. 
Deep-funk, Samba-soul, gospel-funk, reggae-suol, metais carregados, arranjos bem elaborados e a voz ‘recuperada’ do Tim, deram o tom da sonoridade desse trabalho.
Com algumas adaptações na letra a canção “Que beleza” ganha o subtítulo “Imunização racional”, e versos como: “Que beleza é saber seu nome, sua origem, seu passado e seu futuro, que beleza é conhecer o desencanto e ver tudo bem mais claro no escuro...”
Em “O grão mestre varonil”, Tim Maia, à capela, saúda seu guru da Cultura Racional: “ O grão mestre varonil, Manuel, o maior homem do mundo, homem sábio e profundo, semeou conhecimento, missionário da pureza, fez brilhar ó que beleza essa nova geração.”
Em “bom senso” Tim Maia faz o seu ato de contrição e narra sua conversão a Cultura racional: “Já virei calçada maltratada e na virada quase nada me restou a curtição, já rodei o mundo, no entanto num segundo este livro veio a mão...”
O que seria uma balada romântica vira uma espécie de peça publicitária em “Leia o livro o universo em desencanto”, na faixa “O universo em desencanto”, Tim Maia despeja com fervor a doutrina da cultura racional.
Nas faixas “You Don't Know What I Know” e “Rational culture”,Tim Maia desfila seu inglês perfeito e interpreta com a voracidade de cantor gospel do Harlem, era Tim Maia sendo um autentico homem de religião. 

Texto: Penha de Castro.
Referência bibliográfica: “Vale tudo, o som e a fúria de Tim Maia”, de Nelson Motta.

UM CERTO GALILEU - PADRE ZEZINHO, 1975 (PAULINAS COMEP).



Este álbum é certamente a obra mais monumental da música cristã brasileira. Gravado em 1975 ainda nos transporta doces lembranças de infância, das noites de natal, da primeira comunhão e da igrejinha no meio da praça com megafones na torre do sino tocando em mono suas belas canções.
José Fernandes de Oliveira, o Padre Zezinho SCJ, Sacerdote e missionário Dehoniano, sempre atuante na Pastoral de Juventude e demais pastorais da Igreja Católica, onde é indiscutivelmente, o maior ator midiático. Cantor, escritor, compositor, além de exercer dezenas de outras atividades, sua obra é marcada pelo discurso direto coeso, espiritualmente profundo, canções em forma de sermões, sermões em forma de poesia, sinceridade e objetividade nas palavras, e melodias, que longe de serem piegas, mergulham o ouvinte numa mística experiência reflexiva. Racionalidade, espiritualidade e emoção na medida certa, sem ser apelativo, radical ou pedante.
Nos meados da década de 70, o cenário secular se tornou um desafio para a Igreja, o confronto entre as ditaduras de direita e de esquerda, as lutas libertárias, os binômios capitalismo x socialismo, materialismo x espiritualismo, o avanço das Comunidades Eclesiais de Bases e da Teologia da Libertação preocupavam os setores mais conservadores, que viam com maus olhos a participação de clérigos em setores delicados como política e luta social. O ateísmo era o inimigo a ser combatido, em um mundo sem esperanças, onde a lógica materialista era a única explicação para as distorções e contrates que permeavam a vida e a mente das pessoas. 
O Padre Zezinho aparece como mediador, propõe aos jovens cristãos e os ateus um dialogo franco, revela o Cristo Histórico e convida o ouvinte a percebê-lo presente no mundo de hoje.
Na faixa título, é exatamente isso que o Padre Zezinho faz, com arranjos monumentais, com efeitos dramáticos, como se quisesse reproduzir uma experiência cinematográfica, conta a história de Jesus de Nazaré, um jovem galileu, que revelou pela humanidade um amor incondicional.
Em “Mini Sermão”, Padre Zezinho se apresenta com pregador, um profeta do povo, e faz um prefácio do próprio álbum: “Ainda hoje ao cair da tarde, sem muito alarde é favor de dizer que vou pregar o meu sermãozinho pelo caminho que percorrer...”
Em “Cantiga por Francisco” repete o artifício da primeira faixa para contar a história de Francisco de Assis, santo católico que se tornou a maior referência no que se chama “Imitar o Cristo”, um homem que com sua simplicidade, após um impactante chamado a conversão, abalou as estruturas da corrompida igreja medieval.
“O Filho pródigo” e “Cantiga por um ateu” são dirigidas aos jovens que abandonaram a fé em troca do idealismo, de ideologias e da lógica materialista: “Filosofia não me deu felicidade, explicação não explicou o que eu sentia. Eu tinha tudo ao meu redor, saúde, paz e tanto amor e mesmo assim não soube ser feliz...” e ainda, demonstrando humildade cristã: “Eu sei que da verdade eu não sou dono, eu sei que não sei tudo sobre Deus, às vezes quem duvida e faz perguntas e muito mais honesto do que eu.”
“História de Maria” é outra faixa homérica do disco, desta vez a personagem central é Maria de Nazaré, a mãe de Jesus, aqui Padre Zezinho enfatiza a importância de Maria para a História da Salvação, que começou com o seu “Sim”, sua coragem de aceitar ser a mãe daquele que seria imolado pelos pecados do mundo, e de enfrentar uma sociedade patriarcal, rígida e opressora, pondo sua própria vida em jogo para que a vontade de Deus se cumprisse.
“Utopia” é a mais bela e emotiva faixa do álbum, é uma ode a família, onde com sensibilidade Padre Zezinho nos faz lembrar da infância feliz, onde pelo véu da inocência, víamos nossos pais felizes, sem preocupação, vivendo um amor quase idealizado, transborda a sensação do aconchego do lar e de felicidade. O divorcio, que ainda se introduzia no país, era outra grande preocupação da igreja na época.
“Alô, meu Deus” também é voltada às jovens ovelhas desgarradas: “Alô, meu Deus, fazia tanto tempo que eu não mais te procurava. Alô, meu Deus, senti saudades tuas e acabei voltando aqui. Andei por mil caminhos e, como as andorinhas, eu vim fazer meu ninho e em tua casa repousar”.
“É muito jovem minha oração”, traduz a busca pelo equilíbrio do jovem cristão: “É muito jovem minha oração, talvez não tenha maturidade, mais tem a verdade do meu coração {...} Eu fiz da verdade meu porto e destino e desde menino lutei pra ser eu. Errei muitas vezes, Não posso negar, mas posso dizer tranquilo e seguro plantei meu futuro”.
Padre Zezinho fecha o álbum com “Em sintonia”, algo semelhante a um mantra, acalma o coração, prepara o espírito e convida a oração.
PAZ E BEM! 

O PAPA É POP – ENGENHEIROS DO HAVAII, 1990 (BMG).



Sendo o quinto álbum da banda gaúcha, “O Papa é pop”, foi o disco que definitivamente colocou os Engenheiros do Havaii, no hall das grandes bandas do Rock Nacional, ao lado da Legião Urbana, Titãs e Paralamas do Sucesso, vendendo entre 350 a 400 mil cópias, sendo até mesmo considerada a melhor banda do país, por algumas revistas especializadas. Fato surpreendente, considerando que, o Rock Nacional era regionalizado, e as maiores fatias do mercado eram partilhadas entre as bandas do Rio de Janeiro, São Paulo e Brasília.

Com um som mais limpo, a banda assume uma sonoridade mais pop, inclui teclados e bateria eletrônica e toques mais suaves, na guitarra e no baixo. Assume um perfil mais comercial, rompendo com o estigma de banda de garagem, que as vezes a colocava na situação desagradável, de abrir shows, para bandas, que entendiam ser de menor qualidade, pelo fato delas terem mais prestígio e estarem melhor colocadas na mídia.
A capa, escapando do estilo underground das anteriores, mais pop do que nunca, é a clássica foto da banda no sofá, no melhor estilo ‘Simpsons’, marca a entrada espontânea dos Engenheiros no universo da cultura pop, sem aquela de “traidores do movimento”, que fundia a cabeça do pessoal punk.
A utilização das cores vermelha e preta é uma referência ao Clube de Regatas do Flamengo, considerada a maior torcida do Brasil, e por isso mesmo pop, e do Papa João Paulo II, ter vestido a camisa do mesmo, em sua visita ao Brasil em 1980. Ponto para a torcida do Flamengo.
A versão Vinil tem um lado chamado PAPA e um Lado chamado POP, e não contém a canção “Perfeita Simetria”, que só foi lançada na versão CD. Já o encarte do CD, contém uma foto do Pontífice João Paulo II, tomando chimarrão (ponto para os gaúchos), retirada do acervo pessoal, de Leonel Brizola, sendo a mesma gentilmente cedida pelo fotografo Carlos Contursi, autor da imagem, e pelo próprio Brizola. Ponto para os socialistas.
Na canção título, “O Papa é pop” os Engenheiros desfilam a dependência da sociedade de consumo em relação à cultura pop. “Todo mundo tá revendo o que nunca foi visto, todo mundo tá comprando os mais vendidos. É qualquer nota, qualquer notícia, páginas em branco, fotos coloridas, qualquer nova, qualquer notícia, qualquer coisa que se mova é um alvo e ninguém tá salvo...”
Já adotando o método “variações sobre o mesmo tema”, comum em toda a obra dos Engenheiros, junto as famosas frases de efeito, a canção “Perfeita Simetria” se utiliza da mesma melodia de o “Papa é pop”, o que não agrada em parte aos fãs. Aí é o próprio Humberto Gessinger, líder da banda que explica: “usar a mesma melodia não é falta de inspiração para novas composições, o caso é que sobrou inspiração para a mesma melodia”. De fato, “Perfeita Simetria” tem uma temática, mais pessoal: “O teu maior defeito talvez seja a perfeição, tuas virtudes talvez não tenham solução {...} Perdoa o que puder ser perdoado, esquece o que não tiver perdão e vamos voltar aquele lugar...”
“Era um garoto que como eu amava os Beatles e os Rolling Stones” é a primeira gravação não autoral dos Engenheiros, foi também a primeira musica que o Gessinger, aprendeu a tocar no violão, e também foi muito tocada pela banda nos showmícios, que a mesma participava, tocando para o presidenciável Brizola nas eleições de 1989. 
A canção “O exército de um homem só” foi dividida em duas canções, ou será que são duas canções com o mesmo titulo? Bom isso exige um estudo mais aprofundado ao que estamos nos propondo, sabe-se apenas que foi inspirada na obra homônima de Moacyr Sciliar, e que a primeira parte trata invasão ao espaço aéreo soviético, por Mathias Rust, um aviador alemão que conseguiu aterrar na Praça Vermelha, com apenas dezenove anos de idade e, a segunda parte trata da tentativa de invasão ao espaço privado de uma enfermeira, quando o mesmo esteve na prisão.
Para quem curte mensagens subliminares essa é ótima: a faixa “Ilusão de ótica”, na versão do LP, quando o prato girava no sentido contrário, diz a lenda, onde se ouve as expressões: “Por que você roda assim? Eu não gosto que rode assim”, se ouvia: “Por que é que você está ouvindo isto ao contrário? O que você está procurando...”, e outras baboseiras, que podem ser interpretas como coisas satânicas. Nada pode ser mais pop do que isso!
“Pra ser sincero”, a balada romântica do disco, e mais bonita do ponto de vista estéstico, é um “chega pra lá”, ao bom e velho estilo do Rock in roll, com belas sacadas irônicas do Gessinger: “Pra ser sincero não espero de você mais do que educação... Não se sinta capaz de enganar quem não engana a si mesmo... Nós dois temos os mesmos defeitos, sabemos tudo a nosso repeito, somos suspeitos de um crime perfeito, mas crimes perfeitos não deixam suspeitos....”
Na faixa “a violência travestida faz seu trottoir” a referência a um bilhete suicida, daquele que se deixou embriagar pelo consumismo sem freio, o ultimo suspiro de quem tomou doses animalescas de cultura pop: “Tudo que ele deixou foi uma carta de amor pra uma apresentadora de programa infantil. Nela ele dizia que já não era criança, e que a esperança também dança como monstros de um filme japonês. Tudo que ele tinha era uma foto desbotada, recortada de revista especializada em vida de artista. Tudo que ele queria era encontrá-la um dia (todo suicida acredita na vida depois da morte). Tudo que ele tinha cabia no bolso da jaqueta. A vida quando acaba, cabe em qualquer lugar.”
Sim, tem também um pedido de desculpa ao Lulu Santos por Gessinger o ter acusado de fazer musica de entretenimento, coisa de gente pop mesmo!
Creio que você não vai mais ouvir este disco da forma que ouvia antes, desculpa ai, foi mal.

"CANTO DE LÁ" - GLAD AZEVEDO, 2010.



Em 2009, o cantor e compositor Glad Azevedo iniciou um projeto de pesquisa no qual buscou informações sobre os grandes compositores que fizeram a história da Música Popular Maranhense, daí surgiu a ideia de gravar uma série de CDs não autorais, em que como interprete desfilaria para o Brasil diversos títulos do cancioneiro maranhense.
A principio havia uma ideia cronológica, acompanhando a evolução da música do Maranhão através das décadas em que a mesma foi ganhando terreno no inconsciente coletivo do povo maranhense.
O repertório se tornou muito vasto e tenho a impressão que ao fechar o primeiro CD deste projeto, Glad optou critério qualitativo, escolhendo clássicos da música maranhense pela sua importância e pelo lirismo, pela sua universalidade, e pelos atributos musicais.
Assim, em 2010, foi lançado o CD “Canto de lá”, que é uma obra prima, não só da carreira do artista como do repertório maranhense, um disco para se ouvir e para se guardar.
O disco traz clássicos reinventados, com talento e capacidade técnica invejável, faz da música do Maranhão, a música do Brasil e do mundo. Arranjos modernos e bem elaborados, a formação pop e amadurecimento do artista contribuíram para o bom resultado do trabalho e para universalização daquelas canções.
O fato é que a música maranhense, por uma série de fatores que vão do empenho dos artistas á vontade política dos governantes, se tornou um nicho, algo que só se produz e só se ouve no Maranhão, de um regionalismo extremo que se torna exótico para o resto do país. 
O Maranhão é geograficamente meio-norte, recebe influencias culturais tanto do nordeste quanto da região amazónica, possui manifestações culturais bem diversificadas, únicas e exclusivas. O que se faz, em termos culturais, no Maranhão, é diferente de tudo o que se faz no resto do país, o que naturalmente reforça para a música maranhense o estereótipo de música exótica.
O novo trabalho do Glad, como roupagem moderna e características pop, busca quebrar este paradigma, tornar a música maranhense audível para todos, que apesar de sua altíssima qualidade não é bem aceita em termos mercadológicos. Glad tem tido sucesso nessa empreitada, impôs com seu talento o respeito e admiração que a música maranhense merece ter, “Canto de lá”, é um clássico por antecipação,uma obra admirável e de grande mérito.
Destaques para “ Oração latina”, “Erva Santa”, “Alejadinho”, “Ponteira” e “Minha história”, esta ultima vence pelo arranjo inovador e impecável, pela carga emotiva da canção, e pela interpretação impar do artista. 
"Oração latina",canção de autoria do César Teixeira, é um hino das lutas populares no Maranhão, é um “ Pra não dizer que não falei das flores ( Caminhando e cantando)” dos maranhenses. Trilha sonora oficial nos carros de sons em todas as greves, paralisações e caminhadas do Estado.Esta versão do Glad Azevedo, moderna e atual, objetiva trazer os versos do César Teixeira para o contexto nacional, lembrar a luta dos estudantes e trabalhadores que deram seu sangue e sua vida em troca de dias melhores para todos, longe da tirania e da opressão. O Glad é um artista engajado e consciente do seu papel enquanto líder de opinião, a inclusão de “Oração Latina “ no repertório de seu novo CD “Canto de Lá” é um bom exemplo disso.
Vale a pena ouvir.

CANTO GERAL- GERALDO VANDRÉ, 1968.




Ouvi este vinil na casa de um colecionador há alguns anos atrás. Fiquei impressionado com a força da interpretação do Geraldo Vandré e sua poesia combativa, com versos planfetários e apaixonados pela luta libertária. CANTO GERAL é um registro, verdadeiro manifesto, do sentimento popular nos anos de chumbo da ditadura militar. Numa época em que o silêncio era a opção mais segura, que as metáforas eram a forma mais viável de expressão, o autor de “Pra não dizer que não falei das flores”, ousou gritar alto e falar diretamente sobre liberdade, luta de classes, opressão. Era o ano do AI5, os direitos fundamentais se sepultavam debaixo dos atos grotescos da repressão, falar de política, de democracia e igualdade em uma canção já era por demais ousado, quem diria, fazer um disco inteiro temático sobre isso!

O ponto de partida de Geraldo Vandré foi a obra homônima de Pablo Neruda, de 1950, no qual o poeta já se rebelava contra a opressão sofrida pelo povo Chileno e Latino americano. As sangrentas ditaduras militares patrocinadas pelas potencia norte americanas e europeias, eram a grande chaga dos povos latinos americanos, que apesar de sofrerem as penas do subdesenvolvimento ainda tinham sua liberdade e sua vida tolhidas por ditadores atrozes. 

Em “Terra Plana”, primeira faixa do LP, Geraldo Vandré se apresenta em um discurso efusivo: “Me pediram pra deixar de lado toda a tristeza, pra só trazer alegrias e não falar de pobreza. E mais, prometeram que se eu cantasse feliz, agradava com certeza. Eu que não posso enganar, misturo tudo o que vivo. Canto sem competidor, partindo da natureza do lugar onde nasci. Faço versos com clareza, à rima, belo e tristeza. Não separo dor de amor. Deixo claro que a firmeza do meu canto vem da certeza que tenho, de que o poder que cresce sobre a pobreza e faz dos fracos riqueza, foi que me fez cantador. “

Em “Cantiga Brava” é o guerrilheiro que se manifesta:

“O terreiro lá de casa/Não se varre com vassoura/Varre com ponta de sabre/E bala de metralhadora.”
A questão agrária foi outro tema tratado por Gerado Vandré, neste LP, em “O plantador”:
“Quanto mais eu ando,/Mais vejo estrada /E se eu não caminho, /Não sou é nada. /Se tenho a poeira /Como companheira, Faço da poeira /O meu camarada. /Se tenho a poeira /Como companheira, /Faço da poeira /O meu camarada. /O dono quer ver /A terra plantada. /Diz de mim que vou /Pela grande estrada: /"Deixem-no morrer, Não lhe dêem água, Que ele é preguiçoso /E não planta nada." /Eu que plantei tudo /E não tenho nada,/ Ouço tudo e calo, /Na caminhada. /Deixem que ele diga, /Que eu sou preguiçoso, /Mas não planto em tempo /Que é de queimada.”

E assim, desfilam versos carregados de rancor contra os opressores, como “Eu já fui até soldado, hoje muito mais amado sou chofer de caminhão”, que culminam na “Volta do cipó de arueira no lombo de quem mandou dá”, até o encontro do amor romântico, uma verdadeira heresia para o marxistas mais ferrenhos, em “Guerrilheira” e “Companheira”, e ainda, o choro solitário do cantador que se opõe ao romantismo vulgar que já permeava os “sertanejos” da época: “Quem disse que foi viola, quem disse que foi amar, viola, só me consola e o amor não faz chorar... “

Canto Geral, do Geraldo Vandré, canções que vão além disso.

SEVERINO (PARALAMAS DO SUCESSO, 1994).



SEVERINO é mais um daqueles discos lançados dez anos à frente de seu tempo (tal como ocorreu com SELVAGEM?, 1986, também dos Paralamas), portanto são necessários pelo menos dez anos para uma melhor compreensão do mesmo.
SEVERINO, assim como SELVAGEM?, é um disco revolucionário, entretanto, este foi um sucesso de vendas e aquele não repercutiu tanto no mercado. Não que SELVAGEM? Tenha sido um disco mais comercial, mas o fato é que 1986 foi um ano mais aberto a novas idéias e revoluções. Imperava o pensar coletivo e o desejo de mudança, e SELVAGEM? Falava de um Brasil recém liberto da ditadura militar, com todos os vícios que a dita cuja poderia deixar em uma nação. Fazer com que o público sentisse orgulho de ser brasileiro, mesmo vivendo em um país cheio de contradições e misérias, foi o grande trunfo de SELVAGEM? que apesar de ter causado um certo espanto, todo mundo quis ouvir.
SEVERINO nasceu em uma outra época, quando o individualismo falava mais alto e os jovens só pensavam, como o alquimista de Paulo Coelho, em abrir caminhos para suas realizações pessoais, esquecendo-se de que são importantes para a construção de um mundo melhor para todos, para eles e para seus filhos. Não havia mais lugar para utopias, e sem idealismo não se faz revolução. As leis do mercado não permitiam que os infortúnios de uma nação de origens escravistas e subdesenvolvida fossem expostos ao público por uma banda. Ninguém estava a fim de pensar, principalmente nesse tipo de coisa.
SEVERINO não é um disco que agrada muito em uma primeira audição, não tem o mesmo suingue dos outros trabalhos dos Paralamas, e, por isso, assustaria até mesmo um fã desavisado do trio. O álbum tem como principal característica uma sonoridade no mínimo exótica, marcada com a inserção de instrumentos não convencionais como cano de PVC, latão de óleo, serrote e outros. Também conta com as participações especiais de Tom Zé, Linton Kwesi Johnson, Fito Paez, Brian May (guitarrista do Queen), Egberto Gismont e Reggae Philarmonic Orchestra.

Sua temática antropológica e social surge de uma reflexão sobre a constituição do homem (considerado universalmente) e sua inserção no meio ambiente (aqui, o Brasil dos degredados, dos retirantes, dos proletariados e dos Severinos). Este fato já se denuncia na capa, onde vemos o desenho de um homem envolvido pelos nomes de vários órgãos do corpo humano e com a legenda: "eu preciso destas palavras escritas" (aliás, não só a capa, porém, todo o material gráfico do álbum foi inspirado na obra de Arthur Bispo do Rosário, que ao morrer em 1989, em uma colônia, deixou um impressionante acervo, composto de estandartes costurados a mão, dando o testemunho da importância do ato artístico-criador e sua relação com a afirmação da dignidade humana. Arthur não se considerava um louco. Dizia-se, às vezes, preso político. Era sem dúvida um retrato fiel dos Severinos...).

O título SEVERINO carrega consigo duas referências: a primeira ao Rio São Francisco, que para sabermos de sua importância basta que nos recordemos de nossas aulas de geografia (que é sinônimo de vida para as populações ribeirinhas), e a segunda, à obra de João Cabral de Melo Neto, "Morte e Vida Severina".

Logo na primeira faixa nos deparamos com o conflito e a contradição, em “Não me estrague o dia” os Paralamas retomam o diálogo como narrativa musical e apresentam o embate entre o proletário e o patrão; as diferenças sociais; o antagonismo entre os privilégios e a exclusão.

Em “Navegar Impreciso”, o álbum se torna bem atual nestes dias em que se comemora os 500 anos do descobrimento do Brasil.É uma saudação aos que foram abandonados pelas naus portuguesas com a árdua missão de colonizar uma terra já habitada.
Em “Varal”, encontramos o lirismo, a poesia explícita e a sensualidade implícita, ainda na contra-mão do mercado.A música fala do amor, da vida em gestação, do homem que nasce e se torna homem,"‘rebenta a bolsa, revela ao mundo a cabeça quem a tiver que mereça a coroa".É nessa faixa que encontramos um dos mais belos arranjos dos Paralamas. Vale conferir.
“Réquiem do pequeno” contém versos que a si mesmo se explicam. É uma ode aos Severinos que, ao invés de viverem, sobrevivem com alegrias compradas a prazo.
“Vamo batê lata” é o funk da lata, é a linguagem das ruas, o ranger de dentes dos pobres diabos no inferno urbano, a nova língua de Brown no balanço funk do ônibus lotado.
Em “El vampiro bajo el sol”, uma belíssima balada de fito Paez, os Paralamas contam, como em um tango argentino, as desventuras de um vampiro debaixo do sol que diz em sua fuga desesperada:”los que me siguen no me alcanzarám”. É mais uma proclamação do amor a vida e a esperança.
“Músico” é a canção que mais fala de vida e reafirma a temática da composição do homem. A letra de Tom Zé traduz a maravilha que somos em uma visão estrutural microscópica. Diz: “cadeia de gens, somos um trem, um trem que tema ignição de ser...”
“Dos margaritas”, é um coquetel de ritmos e de idéias, é Funk, é Jazz, (e é um blues em ‘SANTORINI BLUES’, o segundo trabalho solo do Herbert Vianna), é um drink para relaxar as tensões do e as angústias do cotidiano.
“O Rio Severino”é a música mais planfetária do álbum. A narrativa em forma de diálogo da primeira faixa retorna com mais agressividade, em frases incômodas: “me diz o que você tem” (com duplo sentido); “quem não tem ABC, não pode entender HIV, nem cobrir, evitar ou ferver”; “É muita gente ingrata reclamando de barriga d’água cheia, são maus cidadãos, é essa gente analfabeta interessada em denegrir a boa imagem de nossa nação"; “és tu Brasil, ó pátria amada, idolatrada por quem tem acesso fácil a todos os teus bens.”É a radiografia de um país doente, infectado pela fome, pela corrupção, pelo descaso das autoridades, pela falta de consciência política, onde os Severinos, nordestinos, brasileiros vivem à espera da assistência que não vem, orando nas contas de um rosário que é um rio, um rio que trás a morte e a vida.
“Cagaço” é a redenção, é o ultimo despertar de quem “bateu de frente com o trem social” e quer libertar o seu pensamento burguês, é o constrangimento, o desconforto de quem tem a mania de pesar de mais.
“Quando o amor dorme” é oficialmente a única faixa romântica do álbum, uma bossa despretensiosa que fala de partidas e reencontros, de momentos e lembranças.
SEVERINO ainda conta com duas faixas bônus, “Go back” e “Casi um segundo”(esta foi considerada por Renato Russo uma das mais belas canções de nosso tempo), ambas em espanhol, pois, esquecidos, na época, pela mídia brasileira, os Paralamas já eram o principal produto cultural brasileiro exposto no mercado latino americano.
Como todos os discos dos Paralamas, SEVERINO é uma salada de ritmos, onde se encontra um pouco de tudo, do jazz, da bossa, da viola repentista, do funk, do baião, do Pop e do Rock. Eles mantém a identidade sonora da banda (ao ouvir, mesmo de relance, você sabe que são eles que estão tocando). O álbum conserva a mesma narrativa em todas as faixas. É uma unidade onde a diversidade é o ponto distintivo da essência. SEVERINO pode não ser o melhor disco do rock brasileiro, mas, sem dúvida, é um dos mais interessantes.